terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

PRECISAMOS MORRER PARA SER ESPÍRITO?

DAS COISAS DO ESPÍRITO, DA VIDA E DA MORTE

Afinal, por que estamos aqui?
Cer­tamente não viemos a este mundo para folgar, cantar, dançar, só comer e copular, defecar, dormir na preguiça e acordar nas inúmeras cobiças de bens materiais e dos desejos de prazeres sensuais dos cinco sentidos; ansiar por dinheiro, posição social, po­der político, notoriedade artística, cientí­fica e coisas deste teor, que geram ar­remedos de segurança física e psíqui­ca, e por cuja falta ou não obtenção, ficamos aí frustrados, desesperados, presos dos inúmeros estados psicopatológicos.

Essas coisas, é claro, são necessá­rias – na medida certa -, e nesta necessidade pode-se até, incluir boa parte do que se tem por supérfluo; segundo os hedo­nistas, para os quais o supérfluo é necessário; necessário, talvez; mas secun­dário, subsidiário, adicional, que ali apenas se juntou, acumulou.

Mas, se tivermos juízo, temos de saber da essência das coi­sas, para considerá-las no seu próprio lugar. Essas coisas circunstanciais se­rão tão urgentes, quanto as coisas transcen­dentais?

As coisas transcendentais são as coisas da alma, do espírito; e manifestam-se, pela virtu­de. A virtude é aqui um coletivo, inclui a ausência de vícios grosseiros ou sutis, e a presença do amor em suas inume­ráveis irradiações; generosidade, compassividade, solidariedade, compreen­são, que não se realizam compulsoriamente, mas se realizam, e se atuali­zam quando surpreendemos a sua au­sência em nosso coração.

A atualização da virtude ocorre no tempo, mas não depende do tempo; pede boa vontade; semelha-se a um esforço; melhor: começa por uma predisposição, um estar, um ser- no-mundo, sumamente interessado, vígil, desperto, atento; por um dinamismo passivo, ou uma passividade dinâmica, que tudo observa, sem julgamentos.

A virtude atualiza-se quando menos se espera, mas não se atualiza quando forçada, porque não é um resultado, um fim, um objetivo; é por isso que ninguém vai se transformar da noite para o dia. Uma mudança deter­minada pelo forçamento é enganosa, é simples aparência, uma máscara, uma persona que “personificamos”, que imaginamos, que criamos para nós mesmos e para os outros. Mas que é falsa!

Só se pode saber que se mudou na relação com o outro. A “virtude” forçada nada mais é que a expressão de sua anterioridade,  é ainda o velho com visos de novo, não mudei.

Jesus disse: “não se remenda pano velho com tecido novo, porque encolhe e o rasgão será maior”. O exemplo disso: é muito comum aquele que se crê santificado (um santo) de novo cair de borco no que ele chama de pecado, e haja culpa e autopunição, ou então autojustificativas: eu sou assim mesmo, esse é meu jeito; os mais simples dizem: Deus quis assim... é meu destino, é o “coitadinho de mim”, todo mundo precisa ter dó dele.
A santidade reconhecida, moldada, é ainda a pecaminosidade, é a enfermidade que se acreditava debelada. É a falsidade do santarrão, do puritano. Os túmulos caiados a que se referiu Jesus.

Então como ocorre a mutação moral?

Ela ocorre independentemente do tempo e da vontade amoldada. Já o dissemos: ela começa por uma predisposição, uma prontidão do espírito, que se põe atento, vígil, acor­dado, e nesta condição observa-se a si mesmo, negativamente, quer dizer, quando se pega em seu desamor, o que é o negativo da virtude.

Dentro deste conceito, observar-se negativamente é perceber, instante a instante, na vida de relação, as próprias insuficiências, sua au­sência. Ante os desafios dos outros, nos meus relacionamentos diários, ob­servo minhas reações, que geralmente refletem uma ausência de virtude.

      Se ninguém me pede definições, eu sei o que é virtude, e se me observo percucientemente (com penetração, agudeza; perspicácia), surpreendo em mim a sua ausência; e quando percebo sua au­sência, tenho já sua presença.

      Não é nada difícil perceber que não sou bom, e o percebê-lo é o princípio da bondade. Ao perceber que não sou aquilo que penso ser, já o sou, estou em vias de sê-lo. Quando perce­bo que sou mentiroso, sou verdadeiro comigo mesmo e já não mais minto; e as­sim é com as demais expressões que se consubstanciam no vício e na virtude.

Esse percebimento de nós mesmos é urgente, porque a morte aí esta, como extensão implícita da vida. Surpreende- nos quando menos a esperamos, nin­guém lhe sabe o dia, nem a hora, muito menos as suas circunstâncias, natu­rais, acidentais, por obra de um vírus, de uma bactéria microscópica, um atro­pelamento, um assassínio, um raio, um infarto, uma apoplexia, um trombo, um aneurisma.

Ela toma-nos de assalto: estamos aí mais ou menos adormeci­dos, sonambúlicos, apáticos, frios, in­diferentes; ou talvez ouriçados de desejozinhos e megalomaniazinhas, e de repente somos ceifados. Realmente, semelha uma ceifa, e por isso a morte é figurada num esqueleto envolto num manto negro; representa-se, não raro, em atitude apocalíptica, tendo nas mãos sua enorme foice, com que vai ceifando os “pobres” mortais: nós que escrevemos, vocês que nos leem, todos muito distraídos, alheios a esse evento maior, que dizer, interessados noutros tema da vida; noutros lances aparentemente mais importantes , mais urgentes (?!).

Não temos assim tanta urgência das coisas circunstanciais, contingentes, temporais; elas podem esperar. Não o podem as coisas transcendentais, porque a vida é breve e longo (imortal) é o espírito. Enquanto aqui, a maioria dorme, sonambúlicos, na fugidia ocasião de nos conhecermos, que se faz necessário, urgente, premente mesmo, que breve é a hora.  Com sua foice inexorável corta-nos a morte o fio da vida, e eis-nos, perplexos, no desconhecido. Vivemos cinquenta, oitenta e até cem anos, no incessante afã de amealhar tesouros e títulos de glória transitórios, pois que aqui ficam; e num átimo implodimos e estamos de todo nus, espiritualmente desvestidos, mercê do espanto do desconhecido.
Logo, se uma – a vida daqui - não conhece a virtude, a outra – na morte - se­rá pior. Sem melhoria da vida, não há boa morte; e esta melhoria não é um aperfeiçoamento, realizável, atualizável segundo os modelos conceituais; é um subproduto do autoconhecimento, ou o autoconhecimento em si mesmo – auto-observação.


E por que temos de ter uma boa vida aqui? Para que possamos ter uma vida boa na perspectiva espiritual, em ple­nitude em algum lugar, mas que se pode vivenciar desde o aqui mesmo, com apreciável intensidade, quando nos conhecemos na multidimensão do nosso ser, da nossa alma, do espírito que aqui já o somos.

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