DAS
COISAS DO ESPÍRITO, DA VIDA E DA MORTE
Afinal, por que estamos aqui?
Certamente não viemos a este mundo para folgar, cantar, dançar,
só comer e copular, defecar, dormir na preguiça e acordar nas inúmeras cobiças
de bens materiais e dos desejos de prazeres sensuais dos cinco sentidos; ansiar
por dinheiro, posição social, poder político, notoriedade artística, científica
e coisas deste teor, que geram arremedos de segurança física e
psíquica, e por cuja falta ou não obtenção, ficamos aí frustrados,
desesperados, presos dos inúmeros estados psicopatológicos.
Essas coisas, é claro, são necessárias –
na medida certa -, e nesta necessidade pode-se até, incluir boa parte do que se
tem por supérfluo; segundo os hedonistas, para os quais o supérfluo é
necessário; necessário, talvez; mas secundário, subsidiário, adicional, que
ali apenas se juntou, acumulou.
Mas, se tivermos juízo, temos de saber da
essência das coisas, para considerá-las no seu próprio lugar. Essas coisas
circunstanciais serão tão urgentes, quanto as coisas transcendentais?
As coisas transcendentais são as coisas da
alma, do espírito; e manifestam-se, pela virtude. A virtude é aqui um coletivo,
inclui a ausência de vícios grosseiros ou sutis, e a presença do amor em suas
inumeráveis irradiações; generosidade, compassividade,
solidariedade, compreensão, que não se realizam compulsoriamente,
mas se realizam, e se atualizam quando surpreendemos a sua ausência em nosso
coração.
A atualização da virtude ocorre
no tempo, mas não depende do tempo; pede
boa vontade; semelha-se a um esforço; melhor: começa por uma predisposição, um
estar, um ser- no-mundo, sumamente interessado, vígil, desperto, atento; por um
dinamismo passivo, ou uma passividade dinâmica, que tudo observa, sem
julgamentos.
A virtude atualiza-se quando menos se
espera, mas não se atualiza quando forçada, porque não é um resultado, um fim,
um objetivo; é por isso que ninguém vai se transformar da noite para o dia. Uma
mudança determinada pelo forçamento é enganosa, é simples aparência, uma
máscara, uma persona que “personificamos”, que imaginamos, que criamos para nós
mesmos e para os outros. Mas que é falsa!
Só se pode saber que se mudou na relação
com o outro. A “virtude” forçada nada mais é que a expressão de sua
anterioridade, é ainda o velho com visos
de novo, não mudei.
Jesus disse: “não se remenda pano velho com
tecido novo, porque encolhe e o rasgão será maior”. O exemplo disso: é
muito comum aquele que se crê santificado (um santo) de novo cair de borco no que ele
chama de pecado, e haja culpa e autopunição, ou então
autojustificativas: eu sou assim mesmo, esse é meu jeito; os mais simples
dizem: Deus quis assim... é meu destino, é o “coitadinho de
mim”, todo mundo precisa ter dó dele.
A santidade reconhecida, moldada, é ainda
a pecaminosidade, é a enfermidade que se acreditava debelada. É a falsidade do
santarrão, do puritano. Os túmulos caiados a que se referiu Jesus.
Então como ocorre a mutação moral?
Ela ocorre independentemente do tempo e da
vontade amoldada. Já o dissemos: ela começa por uma predisposição, uma
prontidão do espírito, que se põe atento, vígil, acordado, e nesta condição
observa-se a si mesmo, negativamente, quer dizer, quando se pega em
seu desamor, o que é o negativo da virtude.
Dentro deste conceito, observar-se
negativamente é perceber, instante a instante, na vida de relação, as próprias
insuficiências, sua ausência. Ante os desafios dos outros, nos meus
relacionamentos diários, observo minhas reações, que geralmente refletem uma
ausência de virtude.
Se
ninguém me pede definições, eu sei o que é virtude, e se me
observo percucientemente (com penetração, agudeza; perspicácia), surpreendo em
mim a sua ausência; e quando percebo sua ausência, tenho já
sua presença.
Não
é nada difícil perceber que não sou bom, e o percebê-lo é o princípio da
bondade. Ao perceber que não sou aquilo que penso ser, já o sou,
estou em vias de sê-lo. Quando percebo que sou mentiroso, sou verdadeiro
comigo mesmo e já não mais minto; e assim é com as demais expressões que se
consubstanciam no vício e na virtude.
Esse percebimento de nós mesmos é urgente,
porque a morte aí esta, como extensão implícita da vida. Surpreende- nos quando
menos a esperamos, ninguém lhe sabe o dia, nem a hora, muito menos as suas
circunstâncias, naturais, acidentais, por obra de um vírus, de uma bactéria
microscópica, um atropelamento, um assassínio, um raio, um infarto, uma
apoplexia, um trombo, um aneurisma.
Ela toma-nos de assalto: estamos aí mais
ou menos adormecidos, sonambúlicos, apáticos, frios, indiferentes; ou talvez
ouriçados de desejozinhos e megalomaniazinhas, e de repente somos ceifados.
Realmente, semelha uma ceifa, e por isso a morte é figurada num esqueleto
envolto num manto negro; representa-se, não raro, em atitude apocalíptica,
tendo nas mãos sua enorme foice, com que vai ceifando os “pobres” mortais: nós
que escrevemos, vocês que nos leem, todos muito distraídos, alheios a esse
evento maior, que dizer, interessados noutros tema da vida; noutros lances aparentemente
mais importantes , mais urgentes (?!).
Não temos assim tanta urgência das coisas circunstanciais,
contingentes, temporais; elas podem esperar. Não o podem as coisas transcendentais,
porque a vida é breve e longo (imortal) é o espírito. Enquanto aqui, a maioria
dorme, sonambúlicos, na fugidia ocasião de nos conhecermos, que se faz necessário,
urgente, premente mesmo, que breve é a hora.
Com sua foice inexorável corta-nos a morte o fio da vida, e
eis-nos, perplexos, no desconhecido. Vivemos cinquenta, oitenta e
até cem anos, no incessante afã de amealhar tesouros e títulos de glória
transitórios, pois que aqui ficam; e num átimo implodimos e estamos de todo
nus, espiritualmente desvestidos, mercê do espanto do desconhecido.
Logo, se uma – a vida daqui - não conhece
a virtude, a outra – na morte - será pior. Sem melhoria da vida, não há boa
morte; e esta melhoria não é um aperfeiçoamento, realizável, atualizável
segundo os modelos conceituais; é um subproduto do
autoconhecimento, ou o autoconhecimento em si mesmo – auto-observação.
E por que temos de ter uma boa vida aqui?
Para que possamos ter uma vida boa na perspectiva espiritual, em plenitude em algum
lugar, mas que se pode vivenciar desde o aqui mesmo, com
apreciável intensidade, quando nos conhecemos na multidimensão do nosso ser, da
nossa alma, do espírito que aqui já o somos.
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